Quando a democracia vira um jogo - José Luiz Quadros de Magalhães
Em uma democracia representativa baseada em partidos políticos ideológicos, com programa definido e coerência, o que implica em fidelidade partidária, poderíamos desejar que o eleitor votasse não em nomes mas em propostas e em um grupo de pessoas integrantes dos partidos políticos capazes de aprovar estas propostas, transformá-las em leis (se no parlamento) e de implementá-las (se no executivo).
Coerentes com as propostas e o programa de seu partido, os seus membros filiados ocupando cargos ou funções no executivo e no legislativo, teriam suas atuações pautadas pela fidelidade às propostas e às diretrizes político-ideológicas de seu partido político. Sabemos entretanto da dificuldade contemporânea de se implementar políticas, principalmente na área econômica, que sejam dissonantes da vontade e dos interesses de quem efetivamente detêm o grande poder que é o poder econômico, nas mãos das grandes corporações capitalistas, o grande capital conservador, especialmente no setor financeiro. Portanto, a dificuldade maior para que o governo e os legisladores tenham coerência com suas propostas reside no leque político-ideológico de esquerda, uma vez que as políticas conservadoras do grande poder econômico encontram respaldo em boa parte da direita mais conservadora.
Do que dissemos acima decorre um primeiro problema que temos verificado nas democracias contemporâneas, especialmente na Europa, fenômeno que está chegando entre nós. A grande insatisfação com os governos tem levado a um desinteresse com a democracia representativa, com índices de abstenção cada vez maiores nas eleições. Este fenômeno pode ser conectado a dois aspectos interessantes: a) as políticas de direita se vinculam aos interesses do capital financeiro conservador que tem levado à exclusão, desemprego, desigualdade e logo à insegurança, criminalidade crescente e violência. Interessante que era justamente a direita que baseava as suas campanhas eleitorais em construção de políticas de segurança. Ou seja: gera violência com políticas econômicas excludentes e promete mais direito penal e mais polícia para oferecer segurança. Hoje, como não há praticamente mais políticas de esquerda moderada ou centro-esquerda, pois esta abandonou a busca de modelos econômicos alternativos (o que sempre foi sua característica essencial), a esquerda também assumiu o discurso policial repressor, ainda com algum pudor em algumas circunstancias; b) as políticas de esquerda têm cada vez menor espaço para a construção de modelos alternativos, especialmente porque diante das políticas econômicas globais neo-conservadoras (chamadas de neoliberais) ditadas pelo grande capital corporativo, a esquerda perde sua razão de ser, oferecendo no máximo algum tipo de assistencialismo com um discurso um pouco mais charmoso (por vezes), mas sem poder ou sem querer desafiar o grande poder econômico, modificando o modelo econômico, proposta histórica de todos os partidos de esquerda.
O pano de fundo ideológico que começou a ser construído a partir da década de 1970 foi da criação da ideologia do fim da história, pelo menos na área econômica, onde coloca-se o modelo econômico neo-conservador (chamado para efeito de marketing de neoliberal), como o grande modelo vitorioso, o único modelo possível, discurso este que veio ser fortalecido com o fim da União Soviética e simbolicamente com a queda do muro de Berlim.
A idéia que se constrói a partir de então, é de que a economia é uma ciência que mostra respostas técnicas exatas aos problemas diários de produção, consumo, emprego, desenvolvimento, inflação, tecnologia e bem-estar, e, sendo este discurso técnico-científico, quase matemático, não podem os políticos e os juristas se insurgirem contra ele. Ora, a grande conquista do século XX consistiu na construção do Estado de bem-estar social que surge como resposta a miséria e à crise gerada pelo liberalismo atacado pelo capital conservador. O Estado de bem-estar social, fundado na democracia representativa e na garantia de direitos sociais, individuais, políticos e econômicos, tinha (ou tem, pois embora em crise ainda existe, e em alguns casos até se fortalece) como principal característica a existência de uma Constituição que deve conter uma ordem econômica que se submete aos imperativos de justiça social e econômica. Logo, temos a economia (que é uma ciência social), se subordinando aos imperativos do Direito e da Política. Esta lógica do Estado Social decorre do pensamento de esquerda do século XIX e XX e que sustenta, com mudanças mais radicais, o pensamento socialista nos Estados Socialistas, no século XX, que buscam justamente um novo modelo econômico, capaz de eliminar as desigualdades socio-econômicas, levando justiça, emprego, saúde, educação e portanto bem-estar a todos.
Com a ascensão dos neo-conservadores ao poder (1980 com Reagan, Tatcher e Kohl como suas maiores expressões) afirma-se o discurso único econômico e transforma-se a economia, para o senso comum, em um ciência exata, por intermédio de maciça propaganda na grande mídia. Agora a economia é uma questão técnica e seus problemas devem ser resolvidos por técnicos e não por políticos ou juristas. Existe um modelo técnico infalível, que garante o sucesso (vejam os Estados Unidos e vejam o fim da União Soviética diziam repetidamente em nossas cabeças), e todos devem adotá-lo. O falso discurso batido em nossas cabeças durante mais de vinte anos diariamente nos diz que "não devemos permitir que os políticos e os juristas atrapalhem a construção de um modelo econômico de sucesso, pois este modelo trará riquezas, desenvolvimento, com acesso a toda a parafernália tecnológica, com carros que falam e celulares que tiram fotos e passam filmes, nos fazendo felizes".
No momento que aceitamos a mentira de que a economia não pode ser subordinada ao Direito e seus imperativos de justiça social e econômica, e logo à política, que produz o Direito na instância parlamentar, desautorizamos a democracia, que agora nada pode diante dos (pseudo) imperativos econômicos. Desautorizamos o Direito (que não deve regulamentar a economia) e a política (feita por não técnicos). Assistimos o comprometimento da democracia, quando governos eleitos se abstêm de modificar o modelo econômico, assistimos o comprometimento ou o suicídio da esquerda, que ao chegar ao poder mantém os mesmos modelos econômicos conservadores excludentes. Ora se a esquerda não mais representa uma alternativa econômica no poder, não há mais esquerda, mas sim um grupo de homens que se dizem bons e bem intencionados, geralmente honestos e sensíveis, que infelizmente não podem fazer nada para mudar o perverso quadro que nos cerca, decorrente de um modelo econômico não menos perverso, mas complexo e poderoso. Enfim assistimos também ao comprometimento do Estado de Direito, quando os Juízes e Tribunais não aplicam a lei e a Constituição pois estas podem comprometer a estabilidade econômica.
Esta séria situação pode ser retratada por dois episódios recentes ocorridos na Itália e na França. Na Itália, após a primeira experiência de dois anos de um governo neo-fascista de Berlusconi, os italianos escolheram uma aliança de centro-esquerda para governá-los. Esperavam mudanças, principalmente no modelo econômico excludente. Veio o governo Prodi que nada mudou substancialmente, seguido do governo Massimo Dalema, este com grande alarde da imprensa mundial, pois tratava-se de um ex-comunista no poder. Entretanto, novamente não ocorreram mudanças econômicas. O desencanto com a política fez com que o eleitorado de centro-esquerda em boa parte se abstivesse nas eleições seguintes, o que permitiu o retorno do projeto neo-fascista, autoritário e corrupto com Berlusconi. Na França um fenômeno semelhante. Depois de um governo de direita conservador, que começou a privatizar empresas, permitindo a concentração de riquezas e a eliminação de postos de trabalhos (Jupé e Chirac), os franceses escolhem uma maioria de esquerda para governá-los, maioria parlamentar esta que impõe ao Presidente conservador (Chirac) a escolha de um primeiro ministro socialista, com apoio do parlamento (Jospin). Com Jospin e os socialistas no poder, entretanto, não houve grandes mudanças, sendo que o modelo econômico de privatização pouco mudou. Mudou o ritmo, mudou o discurso (em parte, pois Jospin fez por vezes um discurso de direito penal e de polícia típico da direita), mas a política econômica substancialmente continuou a mesma. Findo quatro anos como primeiro ministro Jospin se candidata a Presidente da República e sequer consegue ir para o segundo turno, perdendo para o fascista Le Pen e para Chirac, que se candidatou para a reeleição. O que aconteceu foi que o eleitorado de centro-esquerda, mais politizado se recusou a votar, desencantado com a ausência de uma política de esquerda na área econômica, cedendo espaço para a direita, e como em todo o momento de crise, para os fascistas que apelam para um discurso emocional fácil, fundado no carisma pessoal de um líder e em apelos racistas simplificadores como explicação dos problemas.
Este é o quadro de uma democracia representativa em crise em boa parte do mundo. Quadro este perigoso pois leva ao descredito a política, e logo a democracia, e o Direito, e logo o Estado de Direito e tudo o que isto representa: a Constituição como limitadora do poder e dos Direitos Humanos como garantia de dignidade. O nó da questão consiste na transformação da economia em um espaço para técnicos, onde a política e o Direito não entram. É fundamental desconstruir esta ideologia para que visualizemos os problemas concretos: a) o antagonismo vertical entre capitalismo conservador e a possibilidade de dignidade e inclusão; b) o antagonismo vertical entre fundamentalismo religioso cristão conservador que sustenta ideologicamente o projeto econômico conservador e a tolerância, a diversidade horizontal e a democracia; c) finalmente visualizar com clareza a manipulação ideológica das massas pelo meios de comunicação em mãos do capital conservador ou a serviço deste.
O que resta de uma democracia representativa em crise são espetáculos patéticos como o que se vê no episódio do salário mínimo no Brasil: um governo de um partido historicamente de esquerda, adota políticas de direita (especialmente na economia), e negando toda a coerência com o passado, talvez percebendo que o governo de direita que o antecedeu estivesse "tecnicamente correto" propõe um aumento de salário mínimo excessivamente modesto, mas "tecnicamente" adequado.
Era de se supor que a direita, que sempre promoveu aumentos modestos, mas "tecnicamente corretos" segundo seu modelo, apoiasse esta política "responsável"(ser responsável hoje é ser de direita!?) do governo de esquerda com políticas de direita (aliás a direita para ser coerente tinha que apoiar o governo em quase tudo). Entretanto, para "espanto" de muitos, a direita faz oposição a sua própria política, defendendo um salário mínimo maior, "mais justo", mesmo que tecnicamente irresponsável. Irresponsáveis são todos. O governo por não ser o que dizia ser e a direita por não ser o que é. O governo é irresponsável no momento que não é o que prometeu ser, comprometendo a democracia e o Estado de Direito, adotando o discurso conservador de políticas responsáveis, porque tecnicamente adequadas, e a direita é irresponsável por brincar de ser oposição não apoiando o que sempre defendeu mostrando que nunca acreditou no que fez e nem no que faz. O mais patético foi a comemoração mostrada pela imprensa. Comemoraram o novo salário mínimo, que mesmo sendo de R$275,00 continua ridículo, como se comemora um gol na copa do mundo. De volta ao poder a direita vai fazer o que sempre fez, e o salário para eles, vai voltar a ser o tecnicamente responsável, como a esquerda faz agora. Transformaram a política em um jogo irresponsável de concorrência pelo poder. Lembremos que a irresponsabilidade não está no fato de descumprir o tecnicamente indicado, a irresponsabilidade esta no fato de terem abandonado a política democrática transformando-a em um jogo por poder à direita ou em uma negativa de exercício de poder político à esquerda. Quanto aos que se auto proclamam radicais de esquerda se aliando a direita na comemoração do novo salário mínimo, estes parecem que estão continuando a ajudar na legitimação de algo que eles querem combater: a democracia burguesa, pois bem sabem que jamais vão alcançar o que querem através do jogo parlamentar. Lembremos as palavras do filósofo esloveno Salavoj Zizek em dois momentos: "Na vida diária fingimos desejar coisas que não desejamos, e assim, ao final o pior que nos pode acontecer é conseguir o que ‘oficialmente’ desejamos." Citando parte da esquerda européia que joga um jogo no qual não acredita afirma e insiste em meros discursos inflamados mas inconsistentes: "é claro que sabem (que seu discurso é inviável ou inconsistente) mas contam com o fato de que suas exigências não serão atentidas – e assim eles continuam hipocritamente a manter limpa sua consciência radical sem perder sua posição privilegiada."
Slavoj Zizek, um dos importantes interlocutores sobre o debate do pensamento político da esquerda contemporânea, nos lembra que não devemos embarcar no convite da direita conservadora que nos diz que devemos simplesmente escolher um dos dois lados na guerra contra o terrorismo. Existem vários lados e o mundo é extremamente mais complexo do que o maniqueismo simplificador do pensamento fundamentalista conservador. Segundo Zizek, "quando as escolhas são muito claras a ideologia se encontra em seu estado mais puro e as verdadeiras alternativas se tornam obscuras." A democracia liberal não é a alternativa ao fundamentalismo. Não devemos abandonar a busca por uma sociedade onde outros valores que não o consumo, o dinheiro, o materialismo e a concorrência sejam preponderantes. A busca da utopia nos faz realizar coisas aparentemente impossíveis, principalmente quando o que se deve transformar somos nós mesmos.