Acabei de ler a notícia de que a oposição boliviana finalmente pôs fim aos bloqueios de estradas que deixaram incomunicáveis por semanas os cinco departamentos mais rebeldes da Bolívia: Pando, Beni, Chuquisaca, Tarija e Santa Cruz. Agora, o governo deverá ceder e cumprir algumas exigências dos líder oposicionistas (como a restituição do imposto do gás que havia sido desviado para o aumento da pensão para idosos) para recolocar a situação de volta ao eixo.

Fui à Bolívia há poucos meses, e o que vi foi um país extremamente dividido, econômica, politica e socialmente. Tudo meio que gira em torno da altitude: nas terras altas do oeste no chamado altiplano boliviano, a maioria da população é descendente de índios pré-colombianos andinos e as línguas quechua e aymará (falada com fluência pelo presidente Evo Morales) ainda são largamente utilizadas nesta que é a parte mais pobre da Bolívia. Fazem parte dessa região várias cidades politicamente importantes do país, como La Paz, Cochabamba e Oruro.

Já na outra metade ocidental, que corresponde às terras baixas da Amazônia, Pantanal e do Chaco, a população se assemelha mais com os brasileiros do que com os bolivianos das terras altas. A migração européia para essa parte foi muito maior, e graças aos solos férteis das planícies os grandes latifúndios altamente produtivos são responsáveis (junto com a exportação do gás natural, que é abundante nessas áreas) pelo maior desenvolvimento econômico da região. A cidade de Santa Cruz de La Sierra é de longe a mais importante desse grupo.

Sabendo disso, fica fácil entender essa eterna inimizade entre La Paz e Santa Cruz, que tomou destaque internacional em junho passado após a realização do peblicisto pela autonomia departamental organizado pelos governadores da oposição nos departamentos do leste e não reconhecido pelo governo federal. A motivação do movimento foi simples: os departamentos mais ricos queriam que os impostos vindos da exportação do gás sejam investidos lá mesmo, enquanto Evo destina a maior parte dos recursos para o altiplano, parte mais populosa e pobre do país.

Mas talvez o buraco ainda esteja mais embaixo. Durante minha viagem, enquanto fotografava o Clube Social de Santa Cruz de La Sierra na Praça 24 de Setembro, fui abordado por um simpático senhor chamado Miguel. Ele me disse ser sócio do clube há longa data, e me convidou para conhecer a área interna do edifício. Fui, e começamos a conversar sobre a autonomia. Quase meia hora depois, saí de lá completamente convencido que o xis da questão não imposto, dinheiro, taxa ou nada do tipo. É racismo, puro.

"Nós aqui somos muito diferente daqueles kollas", me explicou pacientemente o velhinho. "Nós somos felizes, gostamos de fazer festa, como os brasileiros. Eles são pão-duros, não sabem viver bem e são preguiçosos. São uma raça maldita", disse, e enumerou por mais alguns minutos todas as diferenças físicas, mentais e psicológicas entre essas duas supostas sub-espécies do gênero humano. Mas a conclusão final ficou para um outro senhor do Clube Social, que se animou com a conversa e, pensando que eu era gringo, se aproximou e começou a gritar, gesticulando como se segurasse um revólver imaginário: "They're a fucking race! A fucking race!".

Eu, claro, fiquei chocado, e ainda estou um pouco. Me pergunto o que a humanidade aprendeu depois de Hitler, do apartheid e da guerra dos Balcãs, mas me apavora ainda mais imaginar o que será de um país como a Bolívia, extremamente pobre, envolto em conflitos civis e dividido ao meio pela mesquinhez irracional do racismo.

Nessas horas e com o pré-sal bombando, todo aquele bafafá da Petrobrás-Bolívia parece briga de Davi e Golias, não é?


Señor Miguel: "São uma raça maldita"