ou quando as políticas públicas para a cultura pedem socorro em Belo Horizonte


(Texto de Débora Vieira, publicado no blog Trezentos e replicado neste blog.)

Quero tratar aqui de alguns acontecimentos que têm ilustrado a desastrada gestão de Márcio Lacerda à frente da Prefeitura de Belo Horizonte.

Pra começo de conversa, não custa relembrar um pouco sobre o contexto em que Lacerda se elegeu prefeito de Belo Horizonte, nas eleições de 2008. O candidato do PSB, informal (e escandalosamente) apoiado pelo governador Aécio Neves (PSDB) e pelo prefeito Fernando Pimentel (PT), chegava ao segundo turno tecnicamente empatado com o candidato Leonardo Quintão (PMDB).

Após ter inclusive cogitado a vitória no primeiro turno, Márcio Lacerda se viu, na reta final do primeiro turno, ameaçado pela ascensão meteórica do concorrente Quintão que, além de ter caído no gosto popular, também representou, de alguma forma, uma válvula de escape eleitoral àqueles que não engoliam a aliança infame entre PT e PSDB na capital mineira.

De um lado, o candidato Márcio Lacerda, com uma imagem insossa, um programa de governo (oi, ele apresentou um programa?) inconsistente e um discurso de campanha que conseguia juntar esses dois predicativos. Em suas costas, uma máquina eleitoreira desmedida, que a cada dia se revelava inesgotável na busca pela vitória.

Do outro lado, o meteórico Leonardo Quintão. Filho de  Sebastião Quintão (ex-coronel prefeito da cidade de Ipatinga, onde foi recentemente cassado após assumir um mandato para cujas eleições ele não venceu), o “bom moço” conseguiu subir rapidamente nas pesquisas eleitorais graças a um discurso populista e dramalhão que se dirigia pontualmente às massas. Carismático e fotogênico como poucos, Quintão chegou inclusive a forjar um sotaque “caipira” pra tentar se fazer mais próximo do povo. Por trás dele, como não poderia deixar de ser, outra fonte inesgotável de recur$os que pudessem viabilizar a outrora desacreditada vitória.

O segundo turno das eleições para prefeito em BH foi, mais que um vexame, uma verdadeira afronta ao eleitor belorizontino. Não se debateram propostas, mas pessoalidades das mais banais. Estratégias as mais mesquinhas foram utilizadas: houve acusações de ameaças, houve atores globais intervindo nas campanhas … Quem passasse pelas ruas do centro de Belo Horizonte durante as madrugadas que precederam o pleito, um pobre-coitado afixava cartazes com acusações “anônimas” a um candidato, enquanto, metros adiante, um outro pobre-coitado colava, por cima, outras acusações também “anônimas a respeito do outro candidato.

Enquanto isso, a população, embasbacada diante de tanta baixaria, tentava decidir no boca a boca (ou no e-mail a e-mail) qual candidato seria o “menos-pior”.

Talvez tenha sido mesmo o humorista Tom Cavalcanti quem decidiu o rumo das eleições pra prefeito em BH. Cômico, trágico. Patético. A cartada final veio de uma intervenção à altura do Zorra Total, e venceu Márcio Lacerda.

Pouco mais de um ano depois da posse do Exmo Vencedor das Eleições, façamos, pois, um pequeno balanço da gestão. A meu ver, a administração do prefeito Márcio Lacerda  tem se mostrado desastrosa em diversos quesitos: saúde, moradia, educação, transporte público, cultura… As diversas greves e ameaças de greve dos trabalhadores destes setores só confirmam a insatisfação generalizada para com a gestão.

Meus dois centavos pra discussão vão tratar deste último item – a cultura, a fim de corroborar o que já não é novidade para a população: há mais de um ano, diversos projetos de ampla abrangência no cenário cultural de Belo Horizonte estão estacionados, ou, pior, na marcha ré. 

Destaquemos que BH  não possui uma Secretaria de Cultura, já que a que existia foi, a partir de 2004, substituída por uma Fundação Municipal de Cultura (FMC). A alteração, que prometia maior agilidade e eficácia na execução de políticas públicas para a cultura, se mostrou, ao fim e ao cabo, contraproducente, já que vem atuando sem a menor transparência e competência administrativa na condução dos projetos culturais da cidade.

A propósito, quando da criação da FMC, os funcionários que até então integravam o quadro da Secretaria  foram contratados pela FMC. Entretanto, o artigo 139 da Lei 9011/05, 01/01/05 de Belo Horizonte prevê que a Fundação deve ter um quadro próprio de funcionários. Aliado a isso, a expansão das atividades e a necessidade de uma maior especialização de gestores culturais demandou a abertura de um concurso, que foi realizado em 2008. Foram aprovados 262 profissionais, sendo que, até a presente data, apenas 85 foram nomeados, fato que representa um indício da falta de interesse do prefeito Márcio Lacerda (intermediado pela diretora da FMC, Thaís Pimentel) em resolver a pendência e oferecer à FMC melhores condições de funcionamento.

Bem, quanto à inoperância de que pretendemos tratar, a cartilha é longa.


Praça da Estação 

A única praça da cidade com estrutura e planejamento para realização de eventos de grande porte encontra-se sitiada.

Começo falando um pouco sobre uma atitude que sintetiza o que de patético e autoritário existe no trato que a gestão Márcio Lacerda dispensa à cidade e aos cidadãos.

No dia 09/12/2009, o prefeito publicou um decreto proibindo (!) a realização de eventos de quaisquer natureza (!) na Praça da Estação, sob a alegação de que o patrimônio público estaria sendo depredado. Hábil solução! Se o espaço está sendo destruído, a solução é simples: sitiemos o espaço, proibamos a população de usufruir dele!

Dentre as inúmeras incoerências presentes no decreto, destaquemos que a praça foi planejada justamente para a realização de eventos de grande porte, já que nela não existem muitos elementos (árvores, monumentos, pilastras…) que obstruam a montagem de estruturas como palcos e arenas, além de favorecer a concentração de muita gente. Em contrapartida, a Praça da Liberdade, localizada numa região nobre de Belo Horizonte, é adornada com inúmeros jardins, árvores, fontes… ou seja, é potencialmente mais “sujeita à depredação” e, no entanto, apesar da falta de estrutura para sediar eventos de grande ou médio porte, não há nada que impeça a realização de eventos por lá.

A medida repercutiu em uma série de protestos que, felizmente, saíram das correntes de e-mail e decidiram ocupar a praça. Desde janeiro deste ano, a Praça da Estação tem sido sede de um dos movimentos de ocupação urbana  mais interessantes de que se tem notícia em Belo Horizonte, conhecido como “Praia da Estação”. A população ocupou espontaneamente a praça, levando trajes de banho, bóias, intervenções, bolas, cangas, manifestos, música e farofa… no intuito de ocupar a praça, de resistir ao decreto, de exigir do prefeito mais diálogo e maior transparência na condução da administração da cidade.


Este blog, coletivo, com postagens assinadas e também anônimas, tem realizado/registrado as ações de ocupação desde o princípio, por meio de imagens, manifestos, opiniões… Trata-se de uma iniciativa de reivindicação e manifesto que tem, aos poucos, se performado em um movimento de apropriação, de afirmação da cidadania. O movimento “Praia da Estação” não possui liderança nem liderados, e desafia com a criatividade um autoritarismo que se impõe por meio de um decreto, de tropas de policiais, por viaturas e pela caricatura do medo. Na primeira praia, por exemplo, as fontes que jorram água (e que, por isso, motivaram o evento “praia”, já que permitiria que as pessoas se molhassem) foram desligadas, pois estariam em manutenção. Os praieiros fizeram uma vaquinha e contrataram, então, um caminhão pipa, levando assim o mar ao sertão.

A “manutenção” das fontes aconteceu inúmeras outras vezes, bem como a presença massiva de policiais na praça aos sábados. A propósito, no dia 24 de março, foi realizada uma audiência pública (que contou com grande representatividade popular, motivada pelo evento “Praia”) na Câmara Municipal de Belo Horizonte, a fim de se discutir, dentre outros temas, o decreto e o destino da Praça da Estação.

Por enquanto, a praça segue sitiada. E a praia segue, em sua resistência alimentada a funk e farofa.


Arena da Cultura

Projeto interrompido após 10 anos de exitosa atividade

As atividades do Arena da Cultura, um dos projetos de maior abrangência sociocultural do país, foram interrompidas – justamente após completar 10 anos de existência. O projeto conseguia, em alguma medida, descentralizar os núcleos de produção, ensino, reflexão e difusão artísticas na cidade, por meio das inúmeras atividades (ciclos de formação, oficinas, worshops, debates…) nos campos das artes plásticas, dança, música e teatro. Sob o escuso pretexto da necessidade de “mudanças no modelo de gestão”, a FMC interrompeu as atividades durante 2009 e, somente agora, em março, anunciou o retorno do projeto para o segundo semestre de 2010, o que significa que, na mais otimista das hipóteses, ele terá sido interrompido por “apenas” 1 ano e meio (em uma gestão de 4 anos) – o que significa abandonar a formação sócio-artística de aproximadamente 1000 cidadãos de diversas regiões de Belo Horizonte. Consideramos saudável e necessária a constante avaliação e reelaboração das diretrizes de projetos como o Arena da Cultura. Entretanto, há que se questionar se a interrupção das atividades (e por tanto tempo) é de fato a alternativa mais viável, já que penaliza diretamente a comunidade.

Outro projeto também suspenso sem aviso prévio foi o BH Cidadania, que, de maneira indireta, também viabilizava diversos projetos de caráter cultural.


Experiência e empreendedorismo dá lugar à Politicagem

A opção por se privilegiar conchavos partidários em detrimento da eficiência administrativa também deixou suas marcas em 2009.

Citemos, por exemplo, a demissão de Priscila Freire, que dirigiu o MAP (Museu de Arte da Pampulha) durante 15 anos, nos quais esteve à frente de diversos projetos de fomento a exposições e também encabeçou o projeto de construção de um anexo para o Museu.

Sem uma explicação plausível, Priscila foi substituída pelo ex-prefeito de Barbacena, Martim Francisco Borges de Andrada (PSDB), que, quando da época de sua indicação para o cargo, sequer conhecia as atribuições que lhe caberiam a partir de então. Como previsto, sua atuação só não foi mais desastrosa porque tem passado em brancas nuvens, levando o Museu à ociosidade, por meio de uma redução drástica no número de exposições realizadas em 2009 no Museu.


O destino dos Teatros Municipais de Belo Horizonte

A mudança de diretoria dos Teatros da Fundação Municipal de Cultura não prometia tantos prejuízos às artes cênicas, já que quem assumiu o cargo foi alguém com ampla trajetória no ramo artístico de Belo Horizonte, Carlos Rocha. O que se viu até agora, entretanto, foi a interrupção de iniciativas louváveis do diretor anterior, Luis Carlos Garrocho, como por exemplo os programas Arte Expandida e Ressonâncias. O primeiro constituiu-se como uma iniciativa inovadora (e também bastante promissora) no campo da experimentação de linguagens cênicas. Por meio dos projetos Improvisõesimprovisação intermídia, Momentum – a composição no instante e Laboratório: Textualidades Cênicas contemporâneas, o programa Arte Expandida abriu espaço para o trabalho de diversos artistas/grupos da cidade de Belo Horizonte, além de oferecer ao público a oportunidade do diálogo constante com tais tendências de criação artística. Já no Ressonâncias teve vez a experimentação musical, por meio dos projetos Quarta Sônica – rock independente e Hip-Hop in Concert.

Além disso, a Mostra de Artes Cênicas para Crianças, evento que já integrava o calendário de realizações artísticas de BH e que teve continuidade na gestão de Garrocho, deixou de acontecer em 2009. Enfim, todos os projetos foram interrompidos, e sem qualquer consulta à população ou, pelo menos, uma explicação.
E o teatro Francisco Nunes, a propósito, está com as portas fechadas desde abril do ano passado. Segundo essa matéria do jornal O Tempo, a prefeitura já teria disponibilizado a verba para a reforma do telhado. Entretanto, em coletiva à imprensa realizada quando da divulgação dos resultados do edital da Lei de Incentivo à Cultura/2009, Thais Pimentel falou sobre a necessidade de patrocínio para a reforma do teatro, que completa 60 anos em 2010.

Resumo da não-ópera: projetos interrompidos sem consulta ou explicação à comunidade e Francisco Nunes fechado, sem previsão de reabertura.


Recuo e falta de transparência no repasse de verbas para a Lei Municipal de Incentivo a Cultura

Ainda no quesito da disponibilidade de verbas para a viabilização de projetos culturais, outra polêmica confirma a falta de transparência que caracteriza a atual gestão da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte: A princípio, um orçamento no valor de R$11 milhões havia sido anunciado pela prefeitura para a Lei Municipal de Incentivo à Cultura para o ano de 2010.

Poucos dias depois, a boa notícia caiu por terra, divulgou-se que o valor seria mantido com relação ao do ano passado.

Como se não bastasse, a proposta inicial de que o Fundo Municipal (quando a verba é repassada da prefeitura diretamente para o executor do projeto cultural, o que garante o financiamento de projetos que não possuam, necessariamente, caráter comercial) deveria receber 60% do total dos recursos não foi cumprida: recebeu 4 dos 7,5 milhões destinados à execução da LMIC, o que representa pouco mais de 53% do orçamento.


O quiprocó do FIT – Festival Internacional de Teatro

A propósito, foi justamente na ocasião da divulgação dos projetos aprovados pela LMIC que a Fundação comunicou,  por meio da presidente Thaís Pimentel, o inesperado (?) adiamento do FIT (Festival Internacional de Teatro), um dos mais importantes eventos das Artes Cênicas do estado e também do país. O anúncio do adiamento foi a gota dágua que faltava para deflagrar a falta de perícia da prefeitura de Belo Horizonte na administração dos projetos culturais belorizontinos. Desde o anúncio do cancelamento da edição 2010 do Festival até a divulgação de que o evento aconteceria, o que se viu foi uma série de desastres administrativos.

No dia 18/03, a decisão pelo adiamento foi comunicada à população, que, em momento algum, foi convidada a tratar do assunto, fato que reitera uma postura administrativa autoritária, que parte do princípio de que decisões dessa ordem podem ser tomadas verticalmente, de cima para baixo, e não a partir de debates que contemplem os interesses de toda a comunidade. Sob o “inadvertido” pretexto de que o FIT coincidiria com a Copa do Mundo e com as eleições, e, pior, sob a infame justificativa de que a curadoria não havia conseguido encontrar espetáculos com qualidade suficiente para compor a grade do Festival, o comunicado estarreceu e mobilizou a classe artística da cidade.

Vale lembrar que desde o começo do ano, 45 grupos têm se planejado para pleitear uma vaga no festival, planejamento este que implica o investimento de tempo, de dinheiro, além do cancelamento de outros compromissos, etc.

No dia 20 de março, uma manifestação realizada em frente à Fundação culminou na realização de uma reunião com Thaís Pimentel, Carlos Rocha e representantes da classe artística, ocasião em que a falta de transparência na administração dos recursos públicos foi deflagrada: em meio ás tentativas de se explicar os argumentos apresentados inicialmente, veio à tona a informação de que o atraso no repasse da verba destinada à pré-produção do evento provocou um atraso de sete meses no início dos trabalhos. Ou seja, para omitir a ineficiência da prefeitura na viabilização do FIT, a Fundação recorreu a argumentos insustentáveis já que a coincidência com a Copa e com as eleições já era prevista e, por que não dizer, ofensivos, já que não se esquivou de imputar aos artistas uma suposta “crise criativa”.


No dia 27 de março – dia internacional do teatro – artistas se uniram ao movimento da “Praia da Estação”, anteriormente citado, para mais uma manifestação. Aproximadamente 200 pessoas se reuniram na Praça da Estação, de onde se dirigiram em passeata para a sede da prefeitura, na Avenida Afonso Pena. Lá, também sob o espírito da ocupação do espaço urbano, os manifestantes dançaram, cantaram, deitaram no chão, leram manifestos, convidaram os policiais para também se despirem e entrarem na festa, a ocuparem a rua. Mais uma vez o caminhão pipa foi chamado, e desta vez serviu não apenas para molhar os banhistas da praia, mas também para lavar a prefeitura e a bandeira do Brasil: Ei, Cultura, lave a Prefeitura!


Já no dia 30/03, os curadores Richard Santana e Eid Ribeiro comunicavam, em carta aberta, seu afastamento da curadoria do evento, sob a alegação de que as dificuldades em lidar com as mudanças administrativas dentro da FMC haviam, este ano, alcançado um limite extremo. Eid Ribeiro também reiterou que, diferentemente do que fora divulgado por Thaís Pimentel, os problemas na realização do FIT estavam, sim, relacionados à questões orçamentárias que dificultavam o repasse de verbas e culminaram, por exemplo, no atraso dos salários durante os seis primeiros meses da gestão de Márcio Lacerda e os últimos cinco meses, desde novembro. Nesta mesma data, a FMC comunicou á imprensa seu recuo na decisão do adiamento do FIT.

Atribuindo o recuo à tentativa de aplacar a reação negativa da população que, segundo ela, teria “mal interpretado” a notícia do adiamento, a presidente garantiu que o evento seria realizado, mas não soube falar sob quais condições isso aconteceria, já que, conforme reiterado pelos responsáveis pelo FIT, os trabalhos de pré-produção já estaria seriamente comprometidos. A insegurança por parte de quem tem acompanhado de perto as negociações é grande, já que, repito, falta transparência. Esta reportagem do jornal O Tempo revela o quanto não apenas a edição 2010, mas também a continuidade do evento, está comprometida devido ao “disse me disse” que impera pelos corredores da FMC.

Não há dúvidas de que, mais do que sensibilidade para tratar das questões culturais da cidade de Belo Horizonte, falta ao prefeito Márcio Lacerda e seus delegados uma visão mais democrática do exercício da função que lhes cabe durante esses 4 anos em que lhes foi concedido o dever de trabalhar para este povo que os elegeu.

Cabe dizer, no entanto, que nem tudo está perdido.

Ainda resta, a quem quer contemplar o que resta da cultura em BH, prostar-se feito pateta à janela para ver o Mickey passar.

Atualização em 06/04: Conforme bem lembrado por Rita Garella aqui, “os projetos se acabam e as suas respectivas propagandas permanecem no site da prefeitura, como se os mesmos estivessem sendo plenamente executados”. É “gente iludindo gente”.